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quarta-feira, 28 de março de 2012

O peso das palavras

O peso da palavra escrita
 Estudante posta desabafo sobre professora no Facebook e o pai faz o jovem se retratar com pedido de desculpas publicado no jornal. Escola aproveitou para discutir redes sociais
28/03/2012 | 00:02 Erika Pelegrino
 
Um estudante de 16 anos do Ensino Médio da rede estadual não imaginou que um post de desabafo no Facebook, diante dos inúmeros trabalhos escolares em época de vestibular, fosse ter tanta repercussão. O garoto escreveu que queria “atear fogo” na professora de Artes, que tinha passado mais um trabalho escolar. Pai, professora e diretora garantem que em nenhum momento acreditaram que ele tivesse a intenção de concretizar o ato. Mas entenderam que a situação era uma boa oportunidade para discutir sobre como se expressar nas mídias sociais. A diretora Jéssica Pieri chamou o aluno e os pais na escola. O pai fez o filho se retratar no Facebook e ainda publicou um pedido de desculpas nos classificados do JL.
“Em nenhum momento achei que meu filho faria aquilo. Mas não queria que ele fosse gerador de um movimento que poderia crescer”, diz o pai. “Queria que ficasse muito claro para ele que professores devem ser valorizados e respeitados.” Diante da diretora e dos pais, o garoto pediu perdão para a professora. “Ele estava arrependido, não tinha ideia da dimensão que isso iria ganhar”, afirma a diretora.
Sem lente de aumento
Situações como essa são um convite para pensar sobre até que ponto o ser humano está sendo capturado pelas notícias de violência, a ponto de contaminar seu olhar sobre as situações que vive. A psicóloga Graziela Santi diz que é compreensível que as pessoas tenham medo diante de tantas tragédias. “Perdemos um pouco a crença no ser humano quando vemos notícias como a de Realengo [como citou a professora], mas é preciso tomar cuidado para não ficarmos paranoicos. Temos que nos informar melhor, ver mais o contexto de cada situação e nos agarrarmos mais à experiência que temos com as pessoas”, explica. No caso do aluno, Graziela alerta também para a importância da orientação adequada. “Ele tinha direito de se expressar dessa forma no ambiente privado, mas ao fazer isso publicamente, abre-se para uma gama de interpretações e cada um ouve de acordo com sua história, recursos internos, contexto”, afirma. Segundo ela, a orientação também deve acontecer no âmbito privado. O correto é mesmo chamar o aluno, conversar com ele, e com os pais.
O pai, que não permitiu que o filho desse entrevista, entendeu que deveria fazer uma publicação de retratação também no jornal impresso. “Queria garantir que toda a comunidade da escola e de fora visse.”
A professora de Artes, Rosana Marques Franco diz que o ambiente da escola é tranquilo; que nunca houve problema de violência na escola envolvendo alunos; que o adolescente em questão não tem problemas de disciplina e que não acreditava que ele fosse concretizar o que tinha escrito. Mas não foi suficiente para evitar que ela se assustasse. “Acho que é por causa da violência de forma geral que acontece em todo lugar. Lembrei do caso de Realengo”, conta. “Até o encontro com os pais [do adolescente] estava bastante nervosa. Depois fiquei tranquila. A reação do pai foi muito boa. Não esperava.”
A professora afirmou que se ouvisse isso de um aluno, talvez não tivesse o mesmo impacto da palavra escrita. “Eu veria a expressão dele, o tom de voz. Veria se há verdade ou não.” A diretora ressaltou que o importante nessa situação é justamente trabalhar com os jovens a responsabilidade do uso das mídias sociais. “Eles precisam ter cuidado com o que escrevem.”
Diante de toda repercussão do fato, o pai conta que o filho ficou bastante assustado e constrangido. “A família saiu da cidade, fomos para nosso sítio, passamos bastante tempo juntos e conversamos muito. Tenho certeza que ele aprendeu sobre o peso da palavra. Não proibimos o uso do Facebook, o mais importante é ele aprender a usar.”

sexta-feira, 16 de março de 2012

1º texto para o grupo de estudos

VENHA VER O PÔR-DO-SOL
Lygia Fagundes Telles

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento,
coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele riu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?
-foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hein?!
-Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço. Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...     Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
Podia ter escolhido um outro lugar, não? -Abrandara a voz. - E que
é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o
portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo - acrescentou apontando as crianças na sua ciranda.
Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.
- Ricardo e suas idéias. E agora? Qual o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo.
Ela encarou-o um instante. Evergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr-do-sol!... Ali, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
- Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima.
Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua
afastada... - disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente
apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio.
Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento.
- Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram.
- Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte.
Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos, medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que deprimente - exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos
embora, Ricardo, chega.
- Ali, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja, e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso, não entendo como agüentei tanto, imagine, um ano!
- É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?
- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios.
Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa.
- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança,
nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. - Deu-lhe um rápido beijo na face.
-Chega, Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! - Olhou para trás. - Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio - lamentou ele, impelindo-a para a frente.
- Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr-do-sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos
dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
-Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza-dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. - Enfim, não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.
- Eu gostei de você, Ricardo.'
- E eu te amei...E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba. Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada.
Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la.
- A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver
melhor.
- Todas essas gavetas estão cheias?
- Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão
esmaltado embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo.
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede
oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão
frouxamente iluminado.
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... - Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. - Não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
- Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando !
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem... - Afastou-se para o lado - Repare nos olhos.
- Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça...
Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.
- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida...
Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel.
- Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos ! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada.Tinha seu sorriso – meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais cretina! - exclamou ela, subindo rapidamente a escada. - Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
-Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! - ordenou, torcendo o trinco.- Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta tem uma frincha na porta. Depois vai se afastanto devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo. Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
-Boa noite, Raquel..
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha.
Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
-Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando, as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
- Não..
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
-NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de, um animal sendo, estraçalhado.
Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento.
Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado. Acendeu
um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.